Um outro homem

Neste momento, no preciso instante em que escrevo esta crónica, o vosso escriba, está de ressaca. E se não se importam, já cá venho. Em cima da mesa, um copo de coca-cola limão, dois gurosans e gelo. Nestas alturas, apetece-me ser um bom rapaz e deixar todos os meus vícios e dedicar-me a espalhar a voz do senhor por essas ruas fora, por essas casas adentro. Hoje apetece-me deixar crescer a barba e o bigode, comprar uma túnica branca, umas sandálias de verão e tocar em todas as portas. E ao abrirem, eu diria: “ E Deus disse irmão, foge do pecado e ajuda o teu próximo, pois amanhã o teu próximo podes ser tu!” E levaria as mãos no ar, e entoaria canções lindas e mesmo quando já me levavam na maca para ser levado ao hospital psiquiátrico mais próximo, eu cantaria, eu divulgaria a palavra do senhor dizendo sempre, “Irmão, não caias em tentação, irmão dá-me aqui a mão, irmão, irmão, irmão!”. E posto isto, a ambulância partiria já comigo no seu interior.



Hoje, no dia em que escrevo, enquanto sorvo mais um gurosan que isto não está fácil, apetece-me ser um homem exemplar. Com um emprego certinho, com uma vizinhança cuidada , com a respeitabilidade dos cidadãos que por mim passam. Quero sair à rua e ser visto como um exemplo, sentir que quando passo as mães agarram nos seus filhos e dizem-lhes “ Põe ali os olhos filho, vai ali um grande homem! Quando cresceres gostava que fosses assim”. Que todos me aplaudissem à minha passagem, como se eu fosse um importante estadista acabadinho de salvar o país, indo por essas ruas fora num cabrio reluzente, acenando às massas, oferecendo beijos, fazendo gestos que demonstram força e vigor, que não desistirei nunca nunca, que só poderão esperar mais e melhor de mim.



Hoje, quero ser um outro homem. Deixar todos os meus vícios, fazer a barba, cortar este cabelo que me faz parecer um urso, casar e ter filhos só para os meter no colégio inglês. Eu não acredito que alguém tenha filhos por uma outra razão. Só vejo esta: ir levá-los e buscá-los ao colégio inglês. Eu quero ser um outro homem porque não acredito que possa ser este que agora vos escreve. Descalço, de boxers e com uma camisola das que se usam só para dormir. Vou agora tomar um duche, ensaboar-me até me arderem os olhos e tenho a certeza que quando fechar a torneira, tudo isto, todo este homem, terá ido pelo cano. ( fotografia: Filipa Castro)